Miséria do humanismo
Por Robert de Herte (Eléments nº 97, Janeiro de 2000)
O século XXI será o século da revolução cognitiva e molecular. O grande público apenas vê o superficial – procriação assistida, clonagem e organismos geneticamente modificados (OGM) – mas todos os aspectos da sua vida quotidiana serão influenciados. A descodificação do genoma humano permite, só por si, perspectivas imensas. As doenças mais conhecidas têm todas uma componente genética, pelo que a preparação de medicamentos actuando ao nível das proteínas poderá aliviar milhões de pessoas em todo o mundo. As manipulações genéticas, a terapia genética, a criação de cromossomas artificiais, ainda agora começaram. A inteligência artificial, que tende a atenuar a fronteira entre o animado e o inanimado está, ela própria, a iniciar-se. Após o seu aparecimento, a capacidade dos microprocessadores duplica frequentemente. Em breve iremos dispor de máquinas massivamente inteligentes, muito mais eficazes que qualquer inteligência humana. Ninguém está capacitado para dizer que relação se estabelecerá entre nós e elas. Facto revelador: as leis sobre a bioética deverão, em França, ser reexaminadas a cada cinco anos. Pode dizer-se que tais leis são de geometria variável. Assim que a ovelha Dolly foi clonada, em 1997, pudemos ver tudo o que existe no planeta como “autoridades morais”, desde a UNESCO, ao Parlamento Europeu, declarar solenemente que uma tal perspectiva será “intolerável” para o homem. Dois anos mais tarde já fizeram marcha-atrás. Em França, o Conselho de Estado acaba de autorizar experiências em embriões excedentes (supranumerários) congelados, visando a fecundação “in vitro”. Nos Estados Unidos, o Instituto Nacional de Saúde também admite a utilização de células embrionárias indiferenciadas (“totipotentes”), que permitirão, no futuro, fabricar tecidos humanos com fins científicos. Admite-se, pois, a clonagem terapêutica. Seguir-se-á, um dia, a clonagem reprodutiva.
Diante desta revolução que se anuncia, as comissões de bioética são totalmente impotentes. Querem traçar uma fronteira entre o que é e não é desejável, mas não sabem sob que critérios a estabelecer. Declaram querer respeitar a “dignidade da pessoa humana”, mas praticam um mal maior quando dizem que a clonagem representará verdadeiramente um golpe à primazia, à unicidade ou à autonomia das pessoas. Denunciam o “risco de deriva eugénica”, sem ver que o eugenismo voltou, depois de muito tempo, a fazer parte dos hábitos e costumes, não pelo efeito do constrangimento, mas como resultado de um encontro harmonioso entre a procura dos casais e a oferta dos investigadores. Produzem grandes princípios para apresentar conclusões previamente estabelecidas. Limitam-se, quando muito, a gerar a confusão, propõem “intervalos de reflexão” e desenvolvem uma argumentação prudente sobre a diferença entre o poder-fazer e o dever-fazer. Toda esta tagarelice acaba por cair no vazio. Entre o optimismo científico e heurística do medo (Hans Jonas), a bioética esclarece sobre tudo e sobre nada: a definição do embrião como pessoa potencial pode muito bem justificar o aborto em vez de tornar sagrado o feto!
Os membros destas comissões são sobretudo confrontados com as suas contradições. Os mesmos que ontem estavam aterrorizados pelo determinismo genético, estão hoje aterrorizados com a perspectiva de uma supressão da indeterminação genética. Os mesmos que autorizaram o aborto não querem que se façam experiências com os embriões. Como explicar que o ser humano é, desde a sua concepção, titular de direitos, mas que não possui, necessariamente, o direito de nascer? Como limitar as escolhas reprodutivas e selectivas dos indivíduos, quando consideramos esses indivíduos fundamentalmente como livres e autónomos? Em nome de quê podemos recusar aos pais o direito de terem filhos a seu gosto, quando já reconhecemos às mulheres o direito de os ter quando elas o quiserem? Como argumentar a partir dos direitos do homem, quando a concepção metafísica tradicional da humanidade desapareceu? (Roger-Pol Droit não tem medo de escrever que “pode-se exigir o respeito pelas pessoas, estando convencido que as pessoas não existem, e manter-se coerente”!). Os membros das comissões de bioética raciocinam, de facto, sem uma posição de princípio – nem a podem ter, uma vez que pretendem manter-se neutros sobre a definição de “vida boa”. Querem enunciar regras consensuais que não derivem de nenhuma ética particular, sem se aperceberem que procuram a quadratura do círculo.
Tudo se resume finalmente a julgamentos morais, enunciados de um modo sentencioso ou conspiratório, mas que se mantêm vazios de fundamento. Ainda não tomámos suficientemente consciência deste extraordinário paradoxo: o pensamento moderno que, na época do Iluminismo, opunha a “razão científica” aos “preconceitos”, encontra-se hoje, diante do progresso das novas ciências, na mesma posição “religiosa” (consagração do genoma humano e da “vida”) cuja denúncia tinham permitido outrora que se impusesse.
Há alguns meses, Peter Sloterdijk causou um escândalo relacionado com este hipermoralismo envolvente, ousando dizer que a sociedade selectiva genética não era um fantasma, mas uma realidade, e que o humanismo clássico estava inadaptado para lhe fazer frente porque, como já havia dito Heidegger, o humano já não é hoje a solução, mas sim o problema. O humanismo preconiza, efectivamente, um homem capaz de dominar, mesmo nos momentos em que o domínio do domínio está em causa. Ele raciocina em termos de educação, que não é mais do que uma forma de elevação, num momento em que se realizam estudos profundos “a propósito das variantes da criação do homem”. “A tese do homem como criador dos homens, escreve Sloterdijk, faz estoirar o horizonte humanista, na medida em que o humanismo não tem, nem a capacidade, nem o direito de pensar para além da domesticação e da educação”.
Peter Sloterdijk coloca boas interrogações. Mais que lhes responder, preferimos insultá-lo. Mas as perguntas continuam colocadas. Não será com moratórias e com bons sentimentos que as poderemos responder, mas através de uma reflexão profunda sobre a natureza da técnica e dos novos poderes do homem. A revolução cognitiva e molecular traz perspectivas fascinantes, mas também apresenta riscos (catalogação dos seres e pessoas vistas como objectos). É justamente por isso que não podemos admitir que ela se desenrole sob o controlo de um só sistema, que não vê na pesquisa mais que um motor para o lucro.
A ciência não pensa, mas canaliza o pensamento: podemos pensar para além dela, não podemos pensar contra ela. “Os próximos tempos, diz ainda Sloterdijk, serão, para a humanidade, de decisões políticas relativas à nossa espécie.” Presentemente e desde já, a questão “biopolítica” é lançada para o coração da reflexão filosófica. A evolução cultural que, na espécie humana, tomou as rédeas da evolução biológica está, hoje em dia, em condições de exercer sobre ela os efeitos do retrocesso. Pela primeira vez na sua história, a humanidade tem acesso aos meios para se poder transformar enquanto espécie. Quanto mais a humanidade se considerar uma espécie, mais testará os seus limites. À questão: “Que humanidade desejamos ser?”, não há mais que uma resposta possível. “A nossa herança não é antecedida por nenhum testamento”, escreveu René Char.
O século XXI será o século da revolução cognitiva e molecular. O grande público apenas vê o superficial – procriação assistida, clonagem e organismos geneticamente modificados (OGM) – mas todos os aspectos da sua vida quotidiana serão influenciados. A descodificação do genoma humano permite, só por si, perspectivas imensas. As doenças mais conhecidas têm todas uma componente genética, pelo que a preparação de medicamentos actuando ao nível das proteínas poderá aliviar milhões de pessoas em todo o mundo. As manipulações genéticas, a terapia genética, a criação de cromossomas artificiais, ainda agora começaram. A inteligência artificial, que tende a atenuar a fronteira entre o animado e o inanimado está, ela própria, a iniciar-se. Após o seu aparecimento, a capacidade dos microprocessadores duplica frequentemente. Em breve iremos dispor de máquinas massivamente inteligentes, muito mais eficazes que qualquer inteligência humana. Ninguém está capacitado para dizer que relação se estabelecerá entre nós e elas. Facto revelador: as leis sobre a bioética deverão, em França, ser reexaminadas a cada cinco anos. Pode dizer-se que tais leis são de geometria variável. Assim que a ovelha Dolly foi clonada, em 1997, pudemos ver tudo o que existe no planeta como “autoridades morais”, desde a UNESCO, ao Parlamento Europeu, declarar solenemente que uma tal perspectiva será “intolerável” para o homem. Dois anos mais tarde já fizeram marcha-atrás. Em França, o Conselho de Estado acaba de autorizar experiências em embriões excedentes (supranumerários) congelados, visando a fecundação “in vitro”. Nos Estados Unidos, o Instituto Nacional de Saúde também admite a utilização de células embrionárias indiferenciadas (“totipotentes”), que permitirão, no futuro, fabricar tecidos humanos com fins científicos. Admite-se, pois, a clonagem terapêutica. Seguir-se-á, um dia, a clonagem reprodutiva.
Diante desta revolução que se anuncia, as comissões de bioética são totalmente impotentes. Querem traçar uma fronteira entre o que é e não é desejável, mas não sabem sob que critérios a estabelecer. Declaram querer respeitar a “dignidade da pessoa humana”, mas praticam um mal maior quando dizem que a clonagem representará verdadeiramente um golpe à primazia, à unicidade ou à autonomia das pessoas. Denunciam o “risco de deriva eugénica”, sem ver que o eugenismo voltou, depois de muito tempo, a fazer parte dos hábitos e costumes, não pelo efeito do constrangimento, mas como resultado de um encontro harmonioso entre a procura dos casais e a oferta dos investigadores. Produzem grandes princípios para apresentar conclusões previamente estabelecidas. Limitam-se, quando muito, a gerar a confusão, propõem “intervalos de reflexão” e desenvolvem uma argumentação prudente sobre a diferença entre o poder-fazer e o dever-fazer. Toda esta tagarelice acaba por cair no vazio. Entre o optimismo científico e heurística do medo (Hans Jonas), a bioética esclarece sobre tudo e sobre nada: a definição do embrião como pessoa potencial pode muito bem justificar o aborto em vez de tornar sagrado o feto!
Os membros destas comissões são sobretudo confrontados com as suas contradições. Os mesmos que ontem estavam aterrorizados pelo determinismo genético, estão hoje aterrorizados com a perspectiva de uma supressão da indeterminação genética. Os mesmos que autorizaram o aborto não querem que se façam experiências com os embriões. Como explicar que o ser humano é, desde a sua concepção, titular de direitos, mas que não possui, necessariamente, o direito de nascer? Como limitar as escolhas reprodutivas e selectivas dos indivíduos, quando consideramos esses indivíduos fundamentalmente como livres e autónomos? Em nome de quê podemos recusar aos pais o direito de terem filhos a seu gosto, quando já reconhecemos às mulheres o direito de os ter quando elas o quiserem? Como argumentar a partir dos direitos do homem, quando a concepção metafísica tradicional da humanidade desapareceu? (Roger-Pol Droit não tem medo de escrever que “pode-se exigir o respeito pelas pessoas, estando convencido que as pessoas não existem, e manter-se coerente”!). Os membros das comissões de bioética raciocinam, de facto, sem uma posição de princípio – nem a podem ter, uma vez que pretendem manter-se neutros sobre a definição de “vida boa”. Querem enunciar regras consensuais que não derivem de nenhuma ética particular, sem se aperceberem que procuram a quadratura do círculo.
Tudo se resume finalmente a julgamentos morais, enunciados de um modo sentencioso ou conspiratório, mas que se mantêm vazios de fundamento. Ainda não tomámos suficientemente consciência deste extraordinário paradoxo: o pensamento moderno que, na época do Iluminismo, opunha a “razão científica” aos “preconceitos”, encontra-se hoje, diante do progresso das novas ciências, na mesma posição “religiosa” (consagração do genoma humano e da “vida”) cuja denúncia tinham permitido outrora que se impusesse.
Há alguns meses, Peter Sloterdijk causou um escândalo relacionado com este hipermoralismo envolvente, ousando dizer que a sociedade selectiva genética não era um fantasma, mas uma realidade, e que o humanismo clássico estava inadaptado para lhe fazer frente porque, como já havia dito Heidegger, o humano já não é hoje a solução, mas sim o problema. O humanismo preconiza, efectivamente, um homem capaz de dominar, mesmo nos momentos em que o domínio do domínio está em causa. Ele raciocina em termos de educação, que não é mais do que uma forma de elevação, num momento em que se realizam estudos profundos “a propósito das variantes da criação do homem”. “A tese do homem como criador dos homens, escreve Sloterdijk, faz estoirar o horizonte humanista, na medida em que o humanismo não tem, nem a capacidade, nem o direito de pensar para além da domesticação e da educação”.
Peter Sloterdijk coloca boas interrogações. Mais que lhes responder, preferimos insultá-lo. Mas as perguntas continuam colocadas. Não será com moratórias e com bons sentimentos que as poderemos responder, mas através de uma reflexão profunda sobre a natureza da técnica e dos novos poderes do homem. A revolução cognitiva e molecular traz perspectivas fascinantes, mas também apresenta riscos (catalogação dos seres e pessoas vistas como objectos). É justamente por isso que não podemos admitir que ela se desenrole sob o controlo de um só sistema, que não vê na pesquisa mais que um motor para o lucro.
A ciência não pensa, mas canaliza o pensamento: podemos pensar para além dela, não podemos pensar contra ela. “Os próximos tempos, diz ainda Sloterdijk, serão, para a humanidade, de decisões políticas relativas à nossa espécie.” Presentemente e desde já, a questão “biopolítica” é lançada para o coração da reflexão filosófica. A evolução cultural que, na espécie humana, tomou as rédeas da evolução biológica está, hoje em dia, em condições de exercer sobre ela os efeitos do retrocesso. Pela primeira vez na sua história, a humanidade tem acesso aos meios para se poder transformar enquanto espécie. Quanto mais a humanidade se considerar uma espécie, mais testará os seus limites. À questão: “Que humanidade desejamos ser?”, não há mais que uma resposta possível. “A nossa herança não é antecedida por nenhum testamento”, escreveu René Char.
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