sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Libelo contra a direita conservadora

Libelo contra a direita conservadora

Por Goulart Nogueira (in «Política», n.º 19, pág. 6, 30.09.1970)

Não se trata de defender uma atitude de pura destruição, nem de anarquismo, nem de futurismo desgarrado, nem de progressismo utópico ou que vai sumir-se no ventre da esquerda, nem de revolução total e cega. Existem valores permanentes, realidades a conservar, naturezas a assumir, existem coisas que se transmitem, com justiça, através dos tempos e no concreto. O que eu combato é a posição de rotina e o materialismo prático. Insurjo-me contra a mediocridade (quer seja dourada e espampanante, quer seja frugal e austera), a mediocridade esperta ou burra, a mediocridade sentada, a mediocridade de pedra e cal. O conservador lembra comida de conserva, enlatada; e intoxica. O conservador possui uma boa escrita, contabiliza; muito previdente, não se arrisca a perder nem se vota a sonhos e grandes empreendimentos de alma. O conservador pensa na arca e na barriga. O conservador opõe-se, no fundo, ao espírito, ao espírito ilimitado e viajeiro; de espírito, só admite um grão de sal, para não parecer animal de todo, mas a vasta substância é matéria, grave, pesada, a suar e resfolegar experiência. Tem pé de chumbo, pupilinha acesa, abundosa nádega roçando na lareira ou encaixada na poltrona dum conselho de administração.

O conservador, como o porco, defende a gamela e, se tem ambições, é a de uma gamela maior. Burocrata, administrador, tecnocrata, aí o vemos sempre sensato. Detesta qualquer espécie de loucura. Teme, despreza, censura e combate os apaixonados, os idealistas, os desmedidos. Não percebe a raça de gente como Afonso Henriques, Nun`Álvares, os descobridores, os bandeirantes, Afonso de Albuquerque, os conjurados de 1640, Mouzinho de Albuquerque, Camões. Engalinha especialmente com os poetas, com os artistas, lunáticos inveterados, quando a conservação está em refocilar bem os pés na terra. Aí, sim!

Dizem que o conservador pertence às direitas. Talvez, mas então será a sua degradação e caricatura, a sua doença e o criminoso da família. Porque nem toda a direita é aquilo. Aliás, eu não me interessa que nos coloquemos simplesmente nas direitas. O fascista real — e não aquele que pintam — situa-se para além de direitas e esquerdas. Em primeiro lugar, porque as não reconhece legítimas; em segundo lugar, porque descende de umas e outras; em terceiro lugar, porque alcançou uma posição mais avançada.

A direita conservadora quer a tranquilidade e a segurança — e para isso venderá a alma ao diabo e acabará enterrando na adega quantos ideais houver. Não admite é sobressaltos, violências, extremismos. Tem um arrepio e lança uns protestos indignados, quando conspurcam as glórias pátrias, atacam a nossa herança ultramarina, fazem a demolição ciclónica da religião, ameaçam frontalmente dissolver a família, ou clamorosamente, em regabofe, praticam e trombeteiam o amor livre. Mas se a coisa vier docemente, empantufada, com flores e por aliciantes arroios — com boas maneiras, sim! —, já o caso muda de figura. A direita conservadora fica a escutar violinos, ao canto da lareira, a ver televisão ou ronronando, tolera, fecha os olhos, abranda, deglute o bolo às migalhas e acaba por ser habituar. Sobressaltos, violências, extremismos é que não!

A direita conservadora é moderada. Claro que existem coisas más, feias, indignantes. Mas não é preciso reagir de dentuça arreganhada, ao tabefe e com pulso de ferro, ou de arma aperrada e fulgurante. Claro que o espírito e o ideal são precisos e bons; mas não exageremos, nem vamos perder o sossego e o bem-estar, em aventuras, perigos e aflições, por causa das ideias, de espiritualismos e quejandos enxoframentos de adolescente cabeça ardorosa.

A direita conservadora não quer pensar muito; nem sentir muito. Disso, um condimentozinho, apenas; q. b. Livra, que doses altas podem tirar o sono ou dificultar a digestão! Portanto, adoram um governante que pense por ela, como ela sensatamente, tolerante, de fino trato, prático, livre da terrível praga da ideologia; e que sinta? Também sim, que sinta que ela, direita conservadora, não quer sobressaltos e que não se importa de deslizar para qualquer banda, no caso de ser sem prejuízos materiais e sem violências. A direita conservadora é centrista e, assim, voga, beatamente, se preciso, segundo os ventos da História — mas sem o dizer.

A direita conservadora é um molusco. E no entanto, resulta num penhasco gigantesco e obstrutor para o movimento revolucionário de Justiça e Ideal.

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